segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Batman - O Super-Herói da Mente II - O Símbolo do Medo

por
Corto de Malta

"Você derrotou seis homens. Nós podemos te ensinar a derrotar seiscentos."

Parte I


Após Bruce Wayne retornar a Gotham City, ele decide combater o crime como o Batman, fazendo desta a sua missão. Mas por que usar uma fantasia e uma máscara de morcego e não se valer de meios mais ortodoxos para cumprir seu objetivo?

Muito anos atrás, quando Sócrates estava sendo julgado, perguntaram por que ele decidiu lutar pela Verdade e Justiça como um filósofo - e ainda por cima um filósofo não remunerado - ao invés de se tornar um político, como ocorreu com vários de seus discípulos, que tinham assim o poder nas mãos para criar uma sociedade mais justa. Sócrates respondeu:

 "Certifiquem-se, senhores do júri, que se eu tivesse há muito tempo tentado tomar parte na política, eu deveria ter morrido há muito tempo. Não fiquem zangados comigo por falar a verdade. Nenhum homem sobrevive se realmente se opõe a vocês ou qualquer outra multidão e impede a ocorrência de muitos acontecimentos injustos e ilegais na cidade. Um homem que realmente luta por justiça deve levar uma privada, e não uma vida pública, se quiser sobreviver, mesmo por um curto período de tempo . "

Em Batman Begins Bruce usa sua Persona como playboy para garantir-lhe a privacidade de seus atos pela Justiça. Mas não é o suficiente.



É por isso que quando Ra’s Al Ghul encontra Bruce pela primeira vez na solitária da prisão do Butão após ele ter espancado outros detentos, existe um diálogo entre eles em que Bruce questiona o seu futuro mestre se sua proposta para ingressar na Liga das Sombras para combater o mal teria como finalidade tornar-se um justiceiro ou vigilante e Ra's responde:

"Não, não, não. Um vigilante é apenas um homem perdido em busca de sua própria gratificação. Ele pode ser destruído, ou preso. Mas se você se faz mais do que apenas um homem, se você se dedica a um ideal, e se não podem pará-lo, então você se torna algo completamente diferente. [...] Uma lenda, senhor Wayne. Uma lenda.
Isso significa que toda a força do Batman está não somente em sua mente, mas na projeção que ele cria nas mentes das pessoas.


Parte II 



Discípulo de Sócrates, Platão criou a Teoria das Ideias. Ele acreditava que existem dois mundos: um é o mundo das formas ou ideias e o outro é o mundo físico, material. Tudo que existe no mundo das ideias tem uma cópia no mundo físico. O primeiro mundo é perfeito, enquanto o segundo mundo só possui cópias aproximadas da perfeição.

Elaborando sua teoria, Platão criou o famoso Mito da Caverna. Ele imaginou um grupo de homens que desde que nasceram estavam acorrentados numa caverna, de frente para uma parede. Atrás deles havia uma fogueira e fora da caverna havia um caminho por onde passavam pessoas, animais e objetos. Cada um deles que passava tinha sua sombra projetada na parede pela luz da fogueira e os prisioneiros passaram a vida achando que tais sombras eram a forma real destes seres.

Um dia um deles escapou da caverna e viu o mundo como era de fato. No entanto, ao retornar para contar a boa nova aos seus companheiros foi tratado com desdém e até ameaçado, pois os prisioneiros o tomavam por louco. Não conseguiam imaginar vida fora da caverna e nem sequer que aquelas imagens na parede fossem só projeções da realidade.





Platão criou esta metáfora, entre outras coisas, para representar o julgamento de Sócrates, condenado a morte no final da vida por tentar fazer os homens alcançarem a verdade. Como vimos, Bruce atravessou todo o processo psicológico de Individuação até se tornar Batman. Jung determinou:

"A Individuação não exclui o mundo. Mas o inclui."
Existe aqui uma sutil diferença entre as histórias em quadrinhos do Batman e os filmes da trilogia. Enquanto nas HQs o Cavaleiro das Trevas quer apenas projetar sua imagem para aterrorizar seus inimigos, aqui ele também está disposto a usá-la para inspirar o Bem nas demais pessoas.



O personagem é como o prisioneiro libertado de sua própria caverna pessoal que tem que retornar para ajudar os outros que ainda estão presos. Neste caso presos aos grilhões da opressão, da criminalidade e da corrupção causados pelo crime organizado na cidade encabeçado por Carmine Falcone. A chave para solucionar isso estava num dos ensinamentos de Ra's: a Teatralidade.

É por isso que quando está com Alfred no jato particular retornando a Gotham, Bruce explica sobre o método que utilizará para alcançar aqueles que só enxergam "sombras na parede":


"As pessoas precisam de exemplos dramáticos para tirá-los da apatia e eu não posso fazer isso como Bruce Wayne. Como um homem, eu sou de carne e sangue, eu posso ser ignorado, eu posso ser destruído; mas como um símbolo... como um símbolo eu posso ser incorruptível, eu posso ser eterno."



Parte III 

O símbolo é a representação concreta de algo abstrato. Diversos símbolos povoam a jornada de Bruce. O estetoscópio de seu pai, por exemplo, é fundamental. É uma das lembranças mais fortes que ele tem de Thomas Wayne vivo.

É o objeto que ele pega quando retorna da faculdade para a Mansão da família para o julgamento de Joe Chill. E é a única coisa que resta da residência após Ra's Al Ghul incendiá-la. É o símbolo escolhido por Christopher Nolan para mostrar ao público que Thomas continuaria vivo nas lembranças de Bruce.



Outro símbolo presente é o da Flor Azul, que Ra's manda Bruce recolher nas montanhas ao sair da prisão. Ela é um elemento que aparece repetidas vezes nas artes em geral. Geralmente seu significado é ligado à transcendência e a uma certa relação metafísica das coisas.

Em Batman Begins a toxina do medo é extraída da Flor Azul. Através dela Bruce se cura de sua fobia de Morcegos num ritual da Liga das Sombras. Ao mesmo tempo, através dela o Espantalho cria seu gás alucinógeno do medo e Ra's Al Ghul tenta destruir Gotham.



No caso do Batman propriamente dito, o símbolo é "algo elementar, aterrorizante". Tal como os Morcegos que o apavoraram quando criança, causando-lhe um complexo. Para Jung:

"...o complexo emocionalmente carregado é a imagem de uma determinada situação psíquica com uma carga emocional intensa, que se mostra, assim, incompatível com a habitual disposição ou atitude da consciência. Essa imagem é dotada de certa coesão interna, possui sua própria totalidade e dispõe, ainda, de um grau relativamente alto de autonomia. Isto é, está muito pouco sujeita às disposições da consciência e, por isso, comporta-se na esfera da consciência como um corpus alienum (corpo alheio) cheio de vida..."



Ele então utilizou o seu trauma dos morcegos como arma para combater o seu trauma de criminosos. Podemos ver semelhante descrição num dos trailers de Batman Begins e na explicação de Bruce a Alfred:

"Morcegos me assustam. Está na hora de meus inimigos compartilharem esse pavor."

O primeiro filme da trilogia é repleto deste momentos que definem o personagem.


Esta ideia ganha vida durante a fuga do Asilo Arkham, quando Batman convoca uma revoada de Morcegos que atacam a polícia, enquanto ele escapa entre eles, em meio ao pânico generalizado; quando o Espantalho é atingido pelo gás do medo e enxerga o Batman realmente como um monstro ameaçador; ou quando as pessoas do Narrows atingidas pelo mesmo gás avistam o herói voando e o veem como uma criatura alada soltando fogo pelos olhos e pela boca. Como se ele fosse mesmo uma espécie de Homem-Morcego.

E então Batman transformou o seu medo em um mito, uma lenda. Acontece que isso não é exatamente uma novidade. É até mais comum do que se imagina. Isto porque o Batman não é somente um Símbolo. Ele é um Arquétipo.



Parte IV

 Após Platão, várias pessoas desenvolveram conceitos semelhantes a Teoria das Ideias. Outros a rejeitaram. Mas foi Jung quem se baseou nela para formular sua noção de Inconsciente Coletivo. Todos possuem uma Consciência e um Inconsciente Individual, porém ele acreditava que este último era apenas parte de um Inconsciente muito maior compartilhado por toda a Humanidade. É a parte mais profunda da Psique, onde estariam todos os conhecimentos herdados dos nossos ancestrais, além de tendências inatas do homem.

É como se nossa Psique fosse um iceberg flutuando no oceano. Uma pequena ponta para fora da superfície é a Consciência. Todo o resto do Iceberg, debaixo d'água é o Inconsciente Individual. O Inconsciente Coletivo é o Oceano, que é ligado a esse Iceberg e também a todos os outros flutuando em suas águas.



Isso explica as similaridades aparentemente impossíveis entre civilizações com milhares de quilômetros e centenas de anos de distância, mas que mantém em suas culturas crenças, mitos e lendas familiares entre si.

Os Arquétipos fazem parte destes elementos com traços semelhantes em diferentes povos, pois eles já existem antes mesmo do nosso nascimento e fazem parte do Mundo das Ideias descrito por Platão. Para Jung "existem tantos Arquétipos quanto as situações típicas da vida", pois eles englobam todo o potencial do caminho que cada humano segue em sua existência. Um dos arquétipos mais conhecidos de todos por estar presente em praticamente todas as mitologias é o do Herói.



Os símbolos são representações dos arquétipos. São como as sombras na parede, que são a única coisa que os prisioneiros da caverna podem ver, mas que refletem um significado muito maior. Jung falava:

"Toda obra humana é fruto da fantasia criativa."

Seguindo os passos de Jung, Joseph Campbell estudou esses símbolos nas artes e culturas dos povos para compreender como os mitos poderiam ser projeções do Inconsciente Coletivo. Para ele os criadores de mitos no passado eram o equivalente aos artistas de hoje. A trilogia de Christopher Nolan trabalha bastante em cima do sistema elaborado por ele para mostrar como Bruce poderia "fabricar" uma lenda nas mentes das pessoas de Gotham. Por isso vemos tantas semelhanças com a jornada do Batman e as narrativas primitivas dos heróis. Campbell defendia a seguinte teoria:

"Há uma velha ideia romântica que em alemão se chama "Das Volklische". Segundo ela, a poesia das ideias das culturas tradicionais vem do povo. Não é verdade. Elas vêm da experiência de uma elite. De pessoas de talento especial que têm os ouvidos abertos para a canção do universo. E elas falam ao povo e o povo responde. Elas recebem e há uma interação. Mas o primeiro impulso vem de cima, não de baixo na formação das tradições populares. "
Para ele o membro da elite responsável por difundir essas ideias entre o povo através desta interação era o Xamã. Xamã em siberiano significa "Aquele que enxerga no escuro".




PARTE V

"O Xamã é uma pessoa que no final da infância ou começo da juventude, seja homem ou mulher, teve uma experiência psicológica fortíssima que o deixou inteiramente voltado para si mesmo. Seu inconsciente se abriu por inteiro e a pessoa caiu lá dentro. [...] A experiência do xamã é um tipo de ruptura esquizofrênica. [...] Estar no limiar e voltar. Passar realmente pela experiência da morte. Pessoas que tem sonhos profundos."

Nitidamente Campbell descreve Bruce Wayne e sua jornada para virar Batman. Assim Bruce poderia ser considerado a elite de Gotham, não por ser rico como poderia se pensar, mas por ser um xamã. Ele passou por uma experiência que elevou sua Consciência além da banalidade que a sociedade enxerga e agora se volta novamente para ela para influenciá-la de forma religiosa ou mitológica. Curiosamente, Denny O'Neal escreveu uma HQ homônima do Batman que tratava do mesmo assunto.

É interessante notar como na luta final de Batman Begins no trem Ra's Al Ghul tenta desmistificar aquilo que ele mesmo criou ao dizer ao Batman:


"Você é só um homem com uma capa."
É um golpe ideológico mais poderoso que um golpe físico. Mas não obtém mais resultado aquela altura. Ao se tornar Batman Bruce havia se tornado uma lenda maior do que Ra's Al Ghul.



O Xamã era mais importante do que o Sacerdote de acordo com Campbell, já que este era alguém escolhido socialmente. O Xamã era um dos seres iluminados pela divindade ou por aquilo que nós convencionamos chamar de Deus. Bruce então usa Batman não apenas como veículo para curar seu medo, ou lutar por Justiça, mas para inspirar as pessoas levando a elas o símbolo do Deus interior que vive nele, o seu Self. Representado pela máscara do Batman.

Campbell descreve um povo da Nova Guiné onde um menino para se tornar homem é levado por homens mascarados - deuses na visão dele. Após uma luta, um dos homens se deixa vencer. E coloca a máscara no garoto.







Heinrich Zimmer, amigo de Jung e a quem Campbell admirava bastante, foi quem melhor sintetizou a relação entre aquilo que Platão chamava de Mundo das Ideias, Jung chamava de Inconsciente Coletivo e muitos de nós chamamos de Deus, com os símbolos e demais signos usados para designá-los... e explica também porque nenhum deles de fato conseguem ser nada além de sombras na parede de uma caverna:

"As melhores coisas não podem ser ditas. Porque elas transcendem o pensamento. As segundas melhores são mal compreendidas pois são pensamentos que se referem ao que não pode ser pensado. E ficamos presos com os pensamentos. As terceiras melhores coisas são as que falamos."
 






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